CINCO ANOS
DA LEI DE COTAS
Quitando as parcelas de uma dívida
No dia 29 de agosto de 2017, a sanção da Lei Nº 12.711 completa cinco anos. Ao longo desse período, milhares de estudantes, dentre eles negros e pardos, chegaram às universidades por meio da política, considerada um marco na democratização do ensino superior. Nesta reportagem especial, alunos e professores analisam e comentam o cenário criado pela Lei de Cotas e seus desdobramentos.
HISTÓRIA
Os corredores das universidades públicas revelavam a homogeneidade do ambiente acadêmico. Os números demonstravam uma incongruência entre a composição racial da sociedade brasileira e o número de pretos e pardos que acessavam o ensino superior. A história, no entanto, explicava a exclusão social. Falava-se cada vez mais sobre a dívida histórica deixada pelos anos de escravatura. Passados mais de cem anos da assinatura da Lei Áurea, as universidades brasileiras pareciam reproduzir a estrutura da “casa-grande”.
A discrepância no acesso ao ensino superior tornou-se pauta para universidades e movimentos sociais. Os projetos para que as ações afirmativas, conjunto de políticas públicas ou privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário que buscam eliminar os desequilíbrios existentes entre determinadas categorias sociais até que eles sejam neutralizados, fossem instituídas começaram a se fortalecer e suas discussões foram permeadas por polêmicas.
Antes do Brasil, as cotas já haviam sido implementadas em países como Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Índia, Alemanha, Austrália, Nova Zelândia e Malásia. Para o antropólogo e professor brasileiro-congolês, Kabengele Munanga, sua implementação visava “oferecer aos grupos discriminados e excluídos um tratamento diferenciado para compensar as desvantagens devidas à sua situação de vítimas do racismo e de outras formas de discriminação”, como expôs em um artigo publicado na revista Sociedade e Cultura.
Em 2003 foi realizada a primeira experiência com o sistema de cotas em uma instituição brasileira. Quase uma década depois, a medida passou a fazer parte da legislação do país. Agora a política se estende para os cursos de pós-graduação e concursos públicos, embora a polemização em torno do tema persista.
OS IMPACTOS
Passados cinco anos da promulgação da Lei 12.711/2012, a chamada Lei de Cotas, já é possível afirmar que o perfil das universidades federais do país mudou. De forma gradativa, a diversidade presente na população brasileira tem ocupado as salas das instituições públicas e transformado as estatísticas. Segundo pesquisa divulgada pela Secretaria de Políticas pela Promoção de Igualdade Racial (Seppir), entre os anos 2013 e 2015, a política de Ações Afirmativas garantiu o ingresso de aproximadamente 150 mil estudantes negros nas universidades públicas.
Para que os números tomassem proporções expressivas, muito caminho foi percorrido. Em 1997, o Ministério da Educação (MEC) registrou que apenas 1,8% e 2,2% de pretos e pardos cursavam ou concluíram o ensino superior. Com a instituição da política em 2013, as proporções avançaram: já estavam entre 8,8% e 11% dos estudantes. A Lei previa que a mudança ocorresse de forma gradual. No regulamento elaborado pelo Congresso Nacional, as universidades deveriam reservar, no mínimo, 12,5% de vagas para as cotas étnico-raciais. Ainda assim, iniciativas particulares das universidades com o objetivo de ampliar o percentual exigido por lei poderiam ser feitas. Em 2016, após 5 anos do sancionamento, a política atingiu seu ápice: 50% das vagas para as ações afirmativas.
Acompanhando as mudanças, o número de estudantes que se declaravam negros subiu de 5,9% para 9,8%. Entre os alunos que se declaravam pardos, aumentou de 28,3% para 37,7%. Paralelamente a isso, o percentual de estudantes que se declaravam brancos diminuiu de 59,4%, em 2013, para 45,6% em 2014, de acordo com dados fornecidos pela Associação Nacional de Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES). Pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que houve alteração na forma como os brasileiros percebem suas origens – em 2015, mais da metade da população (53,9%) se declarava de cor preta ou parda – está diretamente relacionada à recuperação da identidade racial, já comentada por vários estudiosos do tema.
Segundo Zilda Martins, coordenadora do grupo de estudos sobre Relações Raciais no Brasil da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ), um dos maiores benefícios da política de cotas é a inserção de alunos com realidades diferentes e questionamentos próprios de suas vivências no universo acadêmico. Para ela, essa diversidade enriquece os debates produzidos em sala de aula. “O nosso desejo com as cotas é que essa presença do aluno negro comece a provocar outros olhares, outras tensões, outros questionamentos, a ponto de disciplinas que trabalhem temáticas como, por exemplo, as culturas africanas, sejam oferecidas. A nossa ideia é que os alunos negros provoquem essa mudança no currículo. Será o maior ganho”, comenta.
DESMASCARANDO MITOS
A pluralidade que a política de ações afirmativas tenta trazer para as universidades não foi bem recebida por toda população. Um dos argumentos contrários à medida referia-se a uma possível redução da qualidade do ensino superior. Entretanto, uma pesquisa realizada por Jacques Wainer, professor titular do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas, e Tatiana Melguizo, professora associada da Rossier School of Education da University of Southern California, com de mais de 1 milhão de alunos no Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE), no triênio 2012-2014, concluiu que esse pressuposto não corresponde à realidade. O desempenho dos alunos que ingressaram no ensino superior por meio das cotas raciais é igual ou superior ao de seus colegas oriundos das vagas destinadas à Ampla Concorrência, não havendo diferença prática entre os conhecimentos dos dois grupos.

O estudante de Publicidade e Propaganda da UFRJ Ruggeron Reis ingressou por meio do sistema de cotas e acredita que o esforço realizado por um aluno cotista para manter-se na universidade com bons resultados pode ser muito maior do que o de um estudante branco vindo da rede particular. “Os alunos cotistas têm um rendimento igual ou melhor do que o de alunos não cotistas em diversas universidades do país. Mas não é o mesmo esforço. Na verdade, é um esforço redobrado para manter o nível acadêmico com a pressão que a gente tem”, enfatiza.
PRIMEIRAS GERAÇÕES
Mesmo que de forma lenta, o perfil dos estudantes universitários está mudando. O fato é um alento para as primeiras gerações de cotistas negros e pardos, que durante seus primeiros anos de faculdade não tiveram tantos rostos semelhantes para se identificarem, como relata Ana Gabriela Ribeiro, estudante do 9º período de Serviço Social, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). “Quando eu entrei na UERJ, em 2012, o processo de cotas já havia iniciado, mas eu percebo que de uns anos pra cá aumentou substancialmente o número de estudantes negros e populares. Isso é motivo de muita alegria para todos nós que fizemos parte dos primeiros anos desse processo”, declara.
Com a formatura marcada para o segundo semestre de 2017, Ana Gabriela comenta emocionada como esse momento será importante para a sua família. “Essa formatura é especial, porque eu sei o quanto isso representa para as outras pessoas que vieram de onde eu vim. Quando as coisas não são fáceis, a gente faz com que cada momento seja único. Para mim, vai ser muito importante ver a minha família que veio de Campo Grande naquele espaço elitizado e branco”, confessou a futura assistente social.
Ana Gabriela comemora a conquista do tão sonhado diploma.
Foto: Reprodução/Acervo Pessoal
Somando universidades federais e intuitos federais, 128 instituições já adotam a Lei de Cotas e, segundo o Ministério da Educação, só no ano de 2014 60.731 estudantes negros ingressaram no ensino superior.
NA SALA DE AULA
Apesar das conquistas, a Lei de Cotas não foi capaz de anular as manifestações de racismo nas universidades. Os estudantes negros e pardos ainda precisam lidar com o preconceito nas salas de aula.
Em abril deste ano, após uma professora da Universidade de São Paulo (USP) zombar de marchinhas de carnaval racistas e abordar em tom de chacota a questão racial presente nas obras do autor Monteiro Lobato, foi lançada uma campanha de conscientização sobre o racismo no ambiente acadêmico. Através da hashtag #MeuProfessorRacista, idealizada pelo Coletivo Ocupação Preta, estudantes negros e pardos expuseram nas redes sociais situações de preconceito pelas quais já passaram. Os depoimentos mostram que o episódio ocorrido na USP não é um caso isolado, mas faz parte de uma conduta comum nas salas de aula do Brasil.
Leia alguns dos relatos no box acima.
Para Mateus Almeida, 20 anos, estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF), a universidade não apenas reflete o racismo da sociedade brasileira, mas pode ajudar a perpetuá-lo. “Eu enxergo muito a universidade não apenas como um reflexo da sociedade, mas como produtora de uma série de arcabouços e estruturas essenciais para que o racismo aconteça. Se entendemos esse espaço como um lugar onde o conhecimento científico, que tem uma validade especial, é construído, então vários dos argumentos essenciais para a manutenção do racismo são construídos no ambiente universitário”, reflete.
Na opinião do cotista, para além de casos de preconceito, os sinais da segregação racial também podem aparecer de formas mais sutis e não verbalizadas. “O racismo acontece quando só tem autores brancos na ementa, quando seus professores são quase todos brancos. Isso é racismo epistêmico. Além disso, quando um aluno vai trazer um recorte racial às discussões, ele muitas vezes é marginalizado pelo professor e visto como um cara incômodo”, explica o estudante, que, embora afirme nunca ter sofrido racismo por parte de professores, se incomoda com a falta de representatividade no ambiente acadêmico. “Grande parte dos alunos negros não se enxergam nos currículos que eles têm que cumprir”, completa.
O aluno Ruggeron Caetano dos Reis também acha que, por mais que alguns professores não sustentem um discurso explicitamente racista, há uma resistência em debater problemas relacionados à realidade dos cotistas. “Eu acho que os professores tentam se policiar nesse aspecto, mas quando você os confronta com a questão de classe – e no Brasil é impossível diferenciar classe de cor –, tentando mostrar que os alunos não têm mais o mesmo tipo de acesso que há dez anos, eles se sentem contrariados e colocam a questão como se o aluno quisesse se fazer de vítima”, diz.
MUITOS COTISTAS, POUCAS BOLSAS
A vida dos cotistas, segundo Ruggeron, é marcada por dificuldades financeiras: por priorizarem fatores como transporte e alimentação, muitas vezes não sobra dinheiro para arcar com despesas relativas ao próprio curso, como xerox de livros. No caso dele, que mora em Nova Iguaçu e estuda na Urca, os primeiros gastos são ainda mais intensos, já que precisa pegar trem, metrô e ônibus para completar seu trajeto e o bandejão do campus da Praia Vermelha foi inaugurado somente neste ano.
A UFRJ oferece aos alunos que possuem renda bruta familiar de até 1,5 salário mínimo per capita e ingressaram através da ação afirmativa social uma bolsa de acesso e permanência (BAP) de 460 reais, mais um auxílio transporte, no valor de 165 ou 297 reais, variando conforme o local de moradia do estudante. O benefício, porém, só dura dois semestres e não pode ser renovado. Após esse período, o estudante pode concorrer a outras bolsas, mas Ruggeron afirma que não é tão fácil conseguí-las.
“O aluno cotista que entrava em 2012, 2013 estava numa situação melhor do que eu vejo os alunos de hoje em dia, que tem que disputar um número muito menor de bolsas com um número muito maior de alunos. A situação está bem complicada. Eu mesmo não consegui bolsa depois do segundo ano por causa disso (situação financeira do país)”, declara. No primeiro semestre deste ano, a UFRJ disponibilizou 280 vagas no Programa de Auxílio ao Estudante, sendo 250 para a modalidade de bolsas auxílio e 30 para a modalidade benefício moradia. A seleção leva em conta o critério de renda e também considera outros fatores que interfiram na permanência e conclusão do curso, como deficiência e a necessidade de cuidado de filhos.
Na opinião de Mateus, as universidades não se prepararam adequadamente para receber os cotistas. “No que tange à assistência, o avanço foi muito precário, quase não existe. O número de alunos nas universidades federais, por exemplo, cresceu muito, e o número de bolsas não aumentou de forma proporcional. E aí quando nós vamos ver quem está nos índices de evasão, geralmente são os alunos negros e periféricos. As cotas permitem o acesso dessas pessoas ao espaço universitário mas não garantem a permanência delas. É por isso que às vezes há a entrada de vários alunos negros no curso e conforme se vão os períodos esses alunos vão desaparecendo”, explica o estudante da UFF.
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA: UMA NECESSIDADE POUCO COMENTADA
Além da deficiência na prestação de assistência financeira, as universidades também falham no oferecimento de atendimento psicológico. De acordo com Ruggeron, esse é um problema que atinge grande parte dos estudantes, especialmente os cotistas, e precisa de resolução urgente. “Talvez o principal problema que a gente tenha hoje para resolver com os cotistas seja a assistência psicológica. A Escola de Comunicação está no mesmo campus do Instituto de Psicologia da UFRJ e a gente não tem acompanhamento psicológico algum aos estudantes no geral, e aos cotistas menos ainda. Porque, geralmente, os estudantes que não entram pelas cotas têm uma vida financeira melhor resolvida e podem procurar esse tipo de ajuda”, esclarece o estudante, que destaca a falta de compreensão dos professores para com a realidade dos cotistas como um dos motivos de abalo psicológico.
“A vida acadêmica é muito maçante. Nós sabemos que ela tem uma carga psicológica negativa muito forte, principalmente por alguns professores que ainda não se adequaram à realidade e não entendem que os alunos não vêm mais do outro lado do túnel da Zona Sul e que não podem chegar de táxi em dia de greve de ônibus”, completa. Já em 2012, apesar de, segundo estudo elaborado pelo Grupo Estratégico de Análise da Educação Superior (GEA) com base nos resultados do ENADE, a grande concentração dos estudantes da educação superior brasileira possuir renda familiar na faixa de até 10 salários mínimos, 60% dos alunos cursaram todo o ensino médio em escolas públicas e 25% viviam do rendimento de seu trabalho e auxiliavam no sustento de suas famílias.
FRAUDES? O CASO UFF

Entrada do campus universitário Valonguinho.
Polêmicas mesmo antes de sua implementação, as cotas raciais voltaram a ser assunto em março deste ano, quando o Jornal O Globo publicou que cerca de 60% dos estudantes que haviam se candidatado a vagas na UFF através desta política haviam sido desclassificados. Instaurada no primeiro semestre de 2017 para identificar fraudes nas autodeclarações, a Comissão de Aferição da UFF é pioneira nas universidades do Rio de Janeiro.
A iniciativa surgiu a partir de uma solicitação do Ministério Público de Niterói, que recebeu denúncias, encaminhadas pelos coletivos negros da Universidade, de possíveis fraudes nas cotas raciais da graduação. O órgão cobrou da instituição, que adotava apenas o critério de autodeclaração para comprovação de cor e etnia, a aplicação de medidas que garantissem que os beneficiados pelas ações afirmativas fossem estudantes que verdadeiramente pertencessem à população negra.
Ana Cláudia Cruz, professora de Antropologia e integrante da Comissão de Aferição, afirmou que havia um receio de que a medida pusesse em xeque a validade e legitimidade da Lei de Cotas Raciais. Após o início dos processos de investigação, porém, ela e os demais integrantes da Comissão foram convencidos de que era necessário maior rigor no processo seletivo.
“Eu fui convencida de que eu estava completamente errada. De fato, teria que haver uma comissão de aferição. Quando a gente observava as fotos das turmas de Odontologia, de Medicina e de Direito, por exemplo, apesar de já estarmos com quatro anos de cotas e termos atingido, em 2016, a porcentagem máxima de alunos que poderiam entrar pela política, continuávamos com turmas brancas. Isso estava esquisito. Alguma coisa, de fato, tinha que acontecer”, declara.
O PROCESSO
Para concorrer à vaga, os alunos precisariam apresentar, no ato de matrícula, além da declaração de cor, uma foto em tamanho 5x7, que seria avaliada pelos membros da Comissão. Caso a análise levantasse suspeitas sobre fraudes, os alunos seriam convocados para uma entrevista. “Depois da matrícula feita, a partir da foto, observamos aqueles que nos pareciam pessoas brancas tentando utilizar a cota étnico-racial e chamamos essas pessoas para uma entrevista”, explica Ana Cláudia.
Pouco antes de entrar na sala de entrevista, os candidatos recebiam um formulário com três questões: Você já sofreu preconceito? Por que você se declara negro, pardo ou indígena? Você tem algo a acrescentar em relação aos documentos preenchidos? No ato da entrevista, caso o estudante tivesse interesse em responder à terceira pergunta, seu depoimento seria gravado em vídeo. Independentemente do que os candidatos tivessem a dizer, os membros Comissão não argumentavam com eles, se mantendo em silêncio.
Segundo Ana Cláudia, alguns entrevistados se apresentaram de forma agressiva, questionando a existência do processo, já que o critério para concorrer à vaga era a autodeclaração, e alegando estarem sofrendo, pela primeira vez, racismo institucional. Matheus Muros Victal, 18 anos, um dos convocados para essa etapa, conta que se sentiu muito desconfortável durante os quarenta minutos que aguardou até ser entrevistado. “Eu lembro que teve uma menina que saiu da sala de entrevista chorando. Então eu pensei ‘Deu ruim! É caça às bruxas! Deve ser um bagulho bizarro… Vamos ver como é’”, relata o estudante de Relações Internacionais.
Liliane Grugel, aluna do curso de Biologia e também convocada para a segunda etapa, afirma que ficou surpresa com a notícia. “Não imaginei que eu fosse ser chamada pra entrevista porque eu não estava fraudando, eu sou parda mesmo. Me considero assim porque minha mãe é branca e meu pai é negro, então eu sou um meio termo”, alega a universitária de 17 anos.

O estudante Matheus Muros Victal passou por todas as etapas do processo de aferição e hoje completa seu primeiro semestre na UFF.
Tanto ela quanto Matheus disseram que se sentiram desconfortáveis diante da situação não só pela tensão que envolvia a entrevista, mas sobretudo pela estrutura da Comissão. Segundo eles, a equipe era formada, em sua maioria, por pessoas brancas, o que causou desconfiança nos candidatos. De acordo com a Universidade, porém, priorizou-se uma diversidade de gênero, função e etnia: a Comissão contava com duas docentes negras, uma docente branca, um docente negro, um servidor negro e dois servidores brancos.
Ana Cláudia também afirma que a configuração da Comissão buscou refletir a diversidade da sociedade brasileira. “O que a gente tentou fazer com essa Comissão foi uma espécie de micro sociedade. Juntos tentaríamos perceber se essa pessoa poderia ter tido ao longo da sua vida algum tipo de problema com a questão racial que pudesse ter influenciado na sua formação de alguma forma”, explica.
AFROCONVENIÊNCIA E AUTODECLARAÇÃO: UMA QUESTÃO SENSÍVEL
A iniciativa da Universidade provocou um debate sobre a questão da chamada “afroconveniência”, que ocorre quando pessoas que nunca se identificaram com a negritude, diante de oportunidade que as favoreçam, se declaram negras ou pardas por terem pais ou avós dessas cores. Na opinião de Ana Cláudia, a inclusão do termo “pardo” na Lei acaba abrindo brechas para essa prática.
“A questão dos pardos traz um monte de gente que nunca se identificou com a negritude na vida, mas que na hora de pleitear um direito, pensa ‘minha mãe é, meu pai é, então eu sou’. Só que nós notamos que, na maioria das vezes, essas pessoas eram brancas. É uma situação bem complicada a ideia de que a política dá direito a esse pardo, mas nós sabemos que ele não sofreu os mesmos tipos de problemas que uma pessoa negra sofreu para conseguir sua formação. E é por isso que ela tem direito à cota”, enfatiza a professora. “Ao mesmo tempo, a política acertou ao colocar o pardo, em função de todo um movimento de embranquecimento do país desde o final do século XIX, onde pessoas que sofrem racismo se incluem nessa categoria”, completa.
Apesar de reconhecer a sensibilidade do critério de autodeclaração e a inexistência de definição objetiva de quem pode ser reconhecido como negro, a Comissão, que adotou o fenótipo como critério de classificação, optou por não estabelecer padrões avaliativos físicos. Segundo Ana Cláudia, especificar aspectos como intensidade dos lábios, tamanho do nariz e do crânio e textura do cabelo, como fez o IPFA em concurso público para admissão de técnicos administrativos em 2016, seria um retrocesso ao século XIX.
“Isso abriria caminho para biologização, no sentido ruim da palavra, da justificativa de classificação ou desclassificação”, explica. Baseada no Parecer nº 3.348/2016, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a UFF buscou verificar a coerência da autodeclaração através de formulários com questões sobre raça, entrevistas e apresentação de fotos.
A combinação desses três mecanismos permitiu que a Comissão identificasse casos explícitos de fraude. Uma candidata, por exemplo, segundo relato de Ana Cláudia, teria manipulado seu nariz em um programa de edição de imagem para deixá-lo mais largo.
Ao contrário das informações inicialmente divulgadas pela imprensa, a Pró Reitoria de Graduação da Universidade (PROGRAD) afirmou em nota que apenas 13,3% dos candidatos foram considerados inaptos para o ingresso pelas ações afirmativas vinculadas à cor nas três primeiras chamadas, o que reforçaria a necessidade de processos que validem a autodeclaração. “Não é o Estado que diz quem é negro e quem não é. Acontece que, na autodeclaração, você não pode dizer qualquer coisa, você não pode inventar uma inverdade. Por isso a heteroidentificação é necessária. A política não é pra quem se sente negro, é pra quem é. A política é para quem ao longo da vida inteira foi negro e teve problemas na sua formação e menos chances de chegar à Universidade”, enfatiza a professora.
UMA ÚLTIMA CHANCE
Impopular entre os estudantes que foram desclassificados, a Comissão não previu inicialmente a possibilidade de entrada com recursos, mas a Reitoria, atendendo a pedidos da comunidade interna da Universidade, ofereceu aos candidatos essa opção. Para Matheus, houve falhas na comunicação do processo. “Faltou informação. A gente não sabia que podia entrar com recurso. Eles falaram muito depois. A maioria dos alunos provavelmente desistiu”, afirma o estudante. Ainda assim, ele aprova a postura da UFF em tentar corrigir erros que teriam cometido.
Já para Liliane o principal problema foi a Universidade ter dado início ao processo de aferição após a efetivação da matrícula. “O mais constrangedor foi que eu já estava há umas semanas na faculdade. Eu tinha prova na mesma semana e desanimei muito pra estudar. Foi horrível. Fiquei com vontade de procurar outra faculdade, mas eu me identifiquei muito com o curso”, declara.
Segundo Ana Cláudia, isso aconteceu porque havia dificuldade de instaurar comissões simultaneamente nos nove campus da UFF, distribuídos em Niterói e no interior do Estado. Embora a Universidade tenha se comprometido a corrigir esse erro em 2017.2, a integrante da Comissão enfatizou que consta no documento de autodeclaração que, em caso de fraude, o candidato poderá perder a vaga.
Em relação aos possíveis fraudadores que já estão estudando na UFF, a PROGRAD afirma que, caso as denúncias recolhidas pelos coletivos negros cheguem ao departamento em forma de processo, haverá a instauração de uma comissão de aferição para investigar os casos.
O FUTURO DAS COTAS
Apesar de os números confirmarem o avanço na democratização do acesso ao ensino superior, certas esferas acadêmicas ainda permanecem distantes da diversidade. De 2001 a 2013, os programas de pós-graduação tiveram uma duplicação no número de estudantes negros, que, ainda assim, representam apenas 28,9% do total de pós-graduandos, segundo dados do PNAD. O fato também foi demonstrado em levantamento divulgado em 2015 pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Apenas 26% das bolsas de formação e pesquisa oferecidas pelo instituto estavam sendo destinadas a estudantes autodeclarados negros.
Tendo em vista a democratização desta outra camada acadêmica, algumas universidades brasileiras começaram a adotar, recentemente, o sistema de cotas no processo de seleção para seus programas de pós-graduação. A Universidade Federal de Goiás (UFG) foi pioneira na adoção das cotas na pós-graduação, instituindo a medida em 2015. Entre algumas outras instituições que já incluíram a política em seus processos de seleção estão as federais de Minas Gerais (UFMG), da Bahia (UFBA), do Espírito Santo (UFES), do Piauí (UFPI), de Mato Grosso (UFMT) e de Alagoas (UFAL).

A professora Zilda Martins acredita que as cotas representarão um ganho para a pós-graduação.
ABRINDO AS PORTAS PARA A INCLUSÃO NOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO
A expansão das ações afirmativas estaria associada a uma recomendação do MEC, como conta a professora Zilda Martins, integrante da comissão responsável pelo estudo da adoção do sistema na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ). “Essa política de cotas vem se estendendo um pouco no âmbito dos concursos públicos federais e, ano passado, o Ministério da Educação divulgou uma portaria incentivando e recomendando a adoção das políticas de ações afirmativas aos cursos de pós graduação das universidades públicas”, conta. A publicação da portaria não implica uma imposição do programa nas universidades, que possuem autonomia para decidir sobre a implementação.
A sugestão, no entanto, está surtindo efeito aos poucos. Dos 126 programas de pós-graduação existentes na UFRJ, apenas seis, até o momento, implementaram as ações afirmativas. Em alguns cursos, a política está em fase de estudos. Na Escola de Comunicação, após debates com alunos, a comissão, formada por professores e alunos, encaminhou ao programa proposta de implantação da política de cotas. O colegiado aprovou 30% de reserva de vagas nos concursos a partir de 2018.
A medida já era discutida entre professores e alunos das universidades públicas. “Essa é uma reivindicação antiga dos discentes. A gente questionava o porquê de não termos estudantes negros na pós-graduação. No meu mestrado, por exemplo, não tinha um negro retinto na minha sala”, conta Zilda. Para ela, trata-se de uma necessidade imediata, que não deve ser postergada. “É importante trabalhar para melhorar a qualidade do Ensino Fundamental, Ensino Médio? Com certeza, óbvio. É pra ontem. Só que são instâncias diferentes, são lutas diferentes, não dá pra comparar. Uma não elimina a outra. De certa forma, é uma maneira de procrastinar. Dizer ‘Vamos levando, a gente começa pelo ensino de base e daqui a 30 anos todos estão no mesmo nível’ é falta de consciência racial e histórica”, analisa.
FORMANDO PROTAGONISTAS
Zilda reitera a importância da atuação das instituições públicas na construção de lideranças e referências negras. “Considero um dever da universidade pública se abrir para o enfrentamento de questões complexas, tornadas naturalizadas, como as relações raciais profundamente desiguais e o racismo estrutural. Ressalto a importância da formação de novos líderes, do protagonismo do estudante negro, ou seja, do afrodescendente deixar de ser objeto e passar ele próprio a ser sujeito”, destaca. “Há algum tempo, há 10 anos, não tínhamos alunos negros na graduação. Hoje, nós temos alunos negros na graduação e na pós. Daqui a algum tempo, nós teremos a formação de uma intelectualidade negra, que é fundamental para sociedade”, completa.
Para Zilda, ainda que o tema seja visto “com nariz torcido”, a questão é legítima e histórica. ”O negro tem que estar em todos os lugares. O que a gente espera é que não seja apenas uma recepção. Esperamos que haja, efetivamente, uma abertura para receber esses alunos. Essa abertura significa ter sensibilidade para perceber as diferenças”, conclui.
Mesmo estando em constante expansão, a duração da política de cotas ainda não está assegurada. A realização de uma revisão ao programa especial para o acesso às instituições de educação superior está prevista no sétimo artigo da Lei 12.711. A política de cotas e seus resultados estarão, então, sujeitos a análises e a possíveis reformulações em 2022.
QUEM ESCREVE

Ana Beatriz Ribeiro

Ana Letícia Loubak

Mariana Lopes Fontes
Estudantes de Jornalismo da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ)
Esta reportagem foi realizada como trabalho de conclusão da disciplina Redação Jornalística I.
© 2017. Todos os direitos reservados.